Um dossiê do embate entre Gaviões da Fiel e Governo do Estado de São Paulo, um conflito que envolve pancadaria, emboscadas, suspeitas de ambos os lados e até merendas (ou a falta delas).
por / Juliano Coelho / fotos / Luciana Cavalcanti
NA MANHÃ DE DOMINGO, DIA 3 DE ABRIL, milhares de integrantes dos Gaviões da Fiel se concentravam em sua sede, no bairro do Bom Retiro, no centro de São Paulo. A maior torcida organizada do Corinthians tradicionalmente se junta na quadra antes dos jogos de fim de semana para confraternizar, tomar uma cerveja e “ensaiar” novos cânticos para as arquibancadas. O grito de guerra da vez era direcionado ao arquirrival Palmeiras: “Ê, minha piada é você/Ih, seu mundial eu nunca vi/Não adianta inventar/Da Parmalat é viúva/A série B é seu lugar”. Com ajuda de caixa e surdo, os Gaviões cantavam com fúria, como se estivessem no meio do jogo. Um deles chegou até a lacrimejar. E era só o ensaio.
Logo menos, às 16h, no Pacaembu, o Palmeiras seria o mandante de um jogo do Campeonato Paulista contra Corinthians e os Gaviões – junto das outras principais torcidas organizadas do time alvinegro, Camisa 12 e Pavilhão 9 -, formariam a maioria dos apoiadores corintianos no diminuto espaço reservado aos visitantes.
O aquecimento na quadra dos Gaviões seria só mais um esquenta pré-clássico não fosse a conjuntura daquele domingo, que gerou a seguinte situação: quando a equipe da SEXY disse ao primeiro tesoureiro dos Gaviões, Fabricio Pouseu, que iria junto da torcida no trajeto de metrô até o estádio, ele ponderou: “Ih, amigo, tá ‘moiado’, acho melhor vocês não irem”. Esta reportagem, em resumo, vai tentar explicar tudo o que está contido nesse aparentemente simples “tá moiado”.
Para isso, é importante explicar o que aconteceu logo após o clássico. O derby paulista foi vencido pelo Palmeiras por 1 a 0, com gol de Dudu aos 32 minutos do segundo tempo, mas o resultado mais importante para os torcedores de organizadas foi uma amarga derrota para ambos os lados: houve ao menos quatro conflitos entre palmeirenses e corintianos (na estação Brás do metrô, em São Miguel Paulista, em Guarulhos e na saída do jogo, próximo da estação do metrô Clínicas) e 52 detidos só no domingo. No mais grave e suspeito dos casos, em São Miguel, um homem ainda não identificado que passava pelo local supostamente antes de os conflitos ocorrerem foi morto a tiros.
Era a brecha que o sistema queria. No dia seguinte, o Governo do Estado respondeu: as torcidas organizadas foram banidas dos estádios até o fim de 2016. Além disso, em todos os clássicos do ano, só é permitida a entrada da torcida da equipe mandante. A decisão ocorreu via secretário de segurança pública, Alexandre de Moraes, e promotor Paulo Castilho, que não é de hoje (mais precisamente há 12 anos) combate a existência das organizadas e afirmou que trabalhará para extingui-las do futebol e que “a torcida organizada, nos moldes que existe hoje, sucumbiu. Ela não pode mais existir”.
Apesar de parecer uma punição severa, na prática, o que fica proibido é que os membros das organizadas levem faixas, instrumentos ou qualquer utensílio que as identifique, mas é certo que todos vão continuar se concentrando e cantando durante os jogos.
COMEÇO DO EMBATE
A história por trás desses lamentáveis números começa em 25 de janeiro de 2016, na final da Copa São Paulo de Futebol Júnior, no Pacaembu. No jogo entre Corinthians e Flamengo – com título do rubro-negro -, os Gaviões decidiram contrariar uma decisão da Federação Paulista de Futebol e levar sinalizadores para o estádio: “A gente sabia que seria punido, mas também que não prejudicaríamos o Corinthians, os moleques mereciam uma festa dessa, ainda mais no Pacaembu. O mando de campo era da Federação Paulista, então só os Gaviões foram punidos”, diz Fabricio. Na ocasião, a torcida foi banida dos estádios por 60 dias e, por isso, começou a se manifestar, em 31 de janeiro, contra a decisão nas portas da FPF, na Barra Funda. Foi o primeiro de muitos protestos dos Gaviões no ano.
Ajudou a pôr lenha nesta fogueira das manifestações nos estádios e fora deles o início, também em janeiro, da Operação Alba Branca, coordenada pela Polícia Civil e Ministério Público de São Paulo. A ação investiga um esquema de superfaturamento na venda de alimentos para a merenda escolar nas escolas públicas. Por mais nobre que seja se manifestar pelo uso correto da verba na alimentação dos estudantes, não é algo muito natural um bando de marmanjo no estádio cantando “Cadê a Merenda?”. O que traz a causa ao interesse dos Gaviões – e eles não fazem questão de esconder isso – é o suposto envolvimento do deputado estadual Fernando Capez (PSDB), atual presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo. Ele estaria no centro do esquema e seria um dos beneficiários de propina. Um dos esquemas desviaria dinheiro ao forjar licitações de uma cooperativa de suco de laranja localizada em Bebedouro, no interior paulista. Hoje, a merenda está em falta nas escolas da rede pública estadual.
O azar que Capez deu é que ele é antigo inimigo das organizadas. Quando agiu como promotor nos anos 1990, ele chegou a extingui-las. Procurado para comentar o caso, o deputado não quis dar entrevista à SEXY mas mandou uma nota negando veementemente seu vínculo com a máfia das merendas e dizendo que irá ajudar a investigação no que for necessário.
Coloque no mesmo caldeirão o fato de a torcida não poder erguer suas tradicionais faixas por causa da FPF e a possibilidade de ver Capez punido. Era o que os Gaviões precisavam para passar a erguer faixas provocativas nos jogos: “Quem vai punir o ladrão de merenda?” e “CBF, FPF, vergonha do futebol”. Até a Globo acabou entrando na dança por causa do horário dos jogos, que faz com que os torcedores saiam do Itaquera meia noite em pleno dia de semana. Para a emissora, coube os elogios: “Futebol refém da Rede Globo” e “Globo manipuladora”.
As imagens, claro, não eram filmadas na transmissão dos jogos, mas viralizaram nas redes sociais. O furor foi tanto que Galvão Bueno se manifestou ao vivo, enquanto narrava Corinthians e Santa Fe, pela Libertadores: “Eu gostaria de registrar que são só três canais que transmitem a Libertadores para o Brasil”, disse, em referência à Globo, Sportv e FOX Sports. “A Globo é a única que transmite gratuitamente em TV aberta, como também fazemos com o futebol brasileiro há 40 anos. Mas protestar é direito do cidadão”.
POLÍCIA PARA QUEM PRECISA
Coincidência ou não, a partir do momento em que os Gaviões começaram a erguer essas faixas, houve um histórico de confrontos entre PM e torcida, principalmente em três jogos do Paulistão. No dia 11 de fevereiro, contra o Capivariano, no fim do 1° tempo, quando a transmissão da Globo foi pro intervalo, a polícia investiu contra torcedores e houve confronto na arquibancada. Já nos jogos contra Oeste, no dia 27 de fevereiro, e contra o Linense, em 19 de março, os embates entre torcida e PM aconteceram depois das partidas, sempre quando os jogos não estavam mais sendo televisionados.
Nessas horas, as imagens captadas com celular ajudaram na divulgação da repressão policial. Vários vídeos mostram corintianos, alguns com crianças no colo, fugindo de bombas de efeito moral da PM. Procurada pela SEXY, a PM divulgou nota oficial sobre o último conflito declarando: “O confronto não foi relacionado a faixas, mas porque alguns integrantes da Gaviões da Fiel atacaram uma patrulha de PMs. Por isso, foi necessária uma reação para coibir a violência. No dia, uma PM foi ferida no braço por pedradas e uma viatura foi danificada”. Do lado de quem não segurava o cassetete, o testemunho é outro: “O Corinthians paga para a PM fazer a segurança do estádio e, mesmo assim, os caras tratam o torcedor com truculência. Os Gaviões estão cansados de tomar borrachada. Houve uma vez em que, na revista da entrada do estádio, vi uma policial abrindo a bolsa de uma torcedora e jogando tudo no chão. Era fralda e mamadeira do filho dela, que estava com o marido. A policial ainda bateu na torcedora, que reclamou. É assim que a gente é tratado nos estádios”, diz Fabricio.
O buraco é ainda mais embaixo para o historiador e editor do site ludopedio.com.br, Max Rocha: “A polícia não age com uma proposta de inteligência policial, age apenas com sua função repressora. No caso dos torcedores isso é notável. A gente pode ver a diferença de tratamento dessa mesma polícia quando a Av. Paulista foi fechada durante 30 horas por grupos pró-impeachment. É um ponto que cabe uma desconfiança”, diz.
EMBOSCADA AO PRESIDENTE
Acha que já é bastante pra dar merda? Pois tem mais. Em 2 de março, depois de se reunir com o promotor Paulo Castilho e os líderes das principais torcidas rivais – Independente, do São Paulo, e Mancha Alvi Verde, do Palmeiras -, o presidente dos Gaviões, Rodrigo de Azevedo Lopes Fonseca, conhecido como Diguinho, e o primeiro-secretário Cristiano de Morais Souza, o Cris, foram cruelmente espancados em uma emboscada no estacionamento de um Wal Mart, na Barra Funda.
Os agressores, segundo testemunhas, foram seis pessoas que não vestiam uniforme de organizadas ou de clube. Eles teriam usado barras de ferro para quebrar os dois cotovelos de Diguinho e arrancar vários dentes de Cris. Não foi registrado B.O., mas, a partir daí abriu-se um inquérito que, até o momento, resultou na prisão de um suspeito Deivison Correia Carvalho, conhecido como “Menor”, integrante da Mancha Alvi Verde,que foi preso em flagrante por tráfico de drogas. Na casa dele, a polícia encontrou 490 pinos de cocaína, uma balança de precisão e mais de R$ 7 mil em dinheiro.
O que faz dessa investigação um rastro de pólvora na animosidade entre as torcidas no clássico do dia 3 de abril é o fato de a prisão de Deivison ter ocorrido na sexta-feira, dia 1º de abril, dois dias antes do jogo e quatro semanas depois da abertura do inquérito. Pra deixar o clássico ainda mais “nervoso”, no mesmo dia em que a Polícia Civil prendia Menor, ela cumpria um mandado de busca e apreensão na quadra dos Gaviões, de maneira ostensiva e com a ajuda do Choque da PM. “Fomos à quadra dos Gaviões por cumprimento de mandado de busca e apreensão no caso das agressões do presidente e do secretário da torcida. No inquérito, se apurou que outros integrantes da torcida, após a agressão, estiveram no local para socorrê-los e pegaram os objetos que foram usados. Para eventual revanche? Não sei. Pra tirar do local? Não sei. Foram encontrados três bastões, dois pedaços de madeira e um de ferro, que nós não sabemos se são os mesmos. Vai pra perícia”, diz a delegada Kelly Cristina César de Andrade, Delegada de Polícia Divisionária da Divisão de Proteção à Pessoa.
E agora, a cereja do bolo: a ação policial na quadra dos Gaviões – que tem o presidente como vítima no inquérito, é bom que se diga – aconteceu um dia depois de a torcida comparecer com uma centena de pessoas às portas da Assembleia Legislativa de São Paulo para protestar contra a máfia da merenda e cobrar uma resposta de Capez. Entre os gritos de guerra, a criatividade e o humor já conhecidos da torcida do Corinthians. Um deles, na melodia de “Uni Duni Tê”, do Trem da Alegria, dizia: “Uni duni duni tê/Criança na escola não tem o que comer/Alô, Alô, Capez, pode esperar pra ver/Os Gaviões ‘chegou’ pra derrubar você”. Outro cantava na melodia de “Poeira”, de Ivete Sangalo: “Laranjaaa, laranjaaa, suco de laranjaa” às portas da assembleia. Outro ainda dizia assim: “Eu não roubo merenda/Eu não sou deputado/Trabalho todo dia/Não roubo meu Estado”.
Durante a coletiva, aliás, Mario Sérgio de Oliveira Pinto, delegado assistente da DRADE (Delegacia de Polícia de Repressão e Análise aos Delitos de Intolerância Esportiva), disse que “houve uma escalada de violência (entre Gaviões da Fiel e Mancha Alvi Verde) com o ataque ao presidente da Gaviões da Fiel. Isso aumentou muito o risco de confronto. Com a ação repressiva de hoje, esse risco claramente diminui, porque aqueles que integram as torcidas com o intuito de praticar crime verificam que a polícia está atenta”.
Não foi o que os quatro conflitos generalizados, uma morte e 52 detenções mostraram. Os torcedores, aliás, não pareciam nada intimidados ao soltar rojões em plena estação Brás do metrô. “Pô, os caras tiveram quatro semanas pra puxar a placa (do carro de Deivison Correia, que estaria no local das agressões) e resolveram prender o cara na sexta-feira? Por que não fizeram na segunda, depois do jogo? Além disso vão lá na sede um dia depois de a gente ir na Assembleia? Complicado”, diz Fabricio.
Durante a coletiva policial, a delegada titular da DRADE, Margareth Barreto, disse que não houve relação entre a data das ações policiais e o dia do clássico: “Na verdade, o inquérito tem um mês e existe uma maturidade da investigação. Não tiramos coelho da cartola. O pedido foi feito ao juiz há uma semana e ficamos aguardando a resposta do Judiciário e calhou de ser na véspera do jogo”.
DEPOIS DO BANIMENTO
A primeira semana depois do banimento das torcidas, a mesma do fechamento desta reportagem, indica que a história está longe de acabar. Na terça-feira, dia 5, o Governo do Estado retirou da quadra dos Gaviões um caminhão do programa Via Rápida no qual eram ministrados cursos gratuitos para a população. “A gente já tinha formado uma turma do curso de padeiro, para o pessoal se profissionalizar. Tínhamos já todos os inscritos para um curso de confeiteiro que ia começar agora”, diz Fabricio. A Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência Tecnologia e Inovação do Governo do Estado de São Paulo, responsável pelas inscrições dos cursos e destinos das carretas do Via Rápida, respondeu à SEXY com nota oficial dizendo que o caminhão é itinerante e vai para Taubaté. A Secretaria diz, por meio de sua assessoria, que os Gaviões sabiam que a carreta sairia após o fim do curso de padeiro e que não há fim político para a saída do caminhão dois dias após os imbróglios do clássico.
Na mesma terça-feira, a torcida Independente, do São Paulo Futebol Clube, se juntou às manifestações dos Gaviões contra a máfia das merendas e o banimento, engrossando o coro, que também já teve a simpatia da Torcida Jovem, do Santos, quando Gaviões e torcedores Santistas gritaram os mesmos cantos de protestos durante a partida entre Santos e Corinthians, no dia 6 de março.
A intenção dos Gaviões da Fiel é continuar os protestos, tanto que fizeram uma assembleia geral, no dia 9 de abril, com ampla participação dos 106 mil sócios da torcida planejando o futuro próximo. “Eles podem banir a gente de levar faixas, podem tirar a nossa sede, mas a gente vai continuar. Quando o caminho fica estreito, é mais fácil saber que você tá no caminho certo, tá ligado?”, diz Fabrício.
Essa história bastante preocupante pelo envolvimento no mínimo suspeito do poder público é corajosamente resumida pelo jornalista e corintiano Juca Kfouri: “A Gaviões têm um começo absolutamente politizado. Eles abriram a primeira faixa pela anistia de exilados e presos políticos no Brasil num jogo Corinthians e Santos, em 1979. Era isso os Gaviões no começo. Depois, a torcida entra na lógica da violência, no combate à Independente, à Mancha Verde, TUP… e se perde. Essa violência é a principal responsável, segundo todas as pesquisas, pelo afastamento do torcedor comum dos estádios. De uns tempos pra cá, na Gaviões começou uma coisa mais politizada de novo. E o fato de a torcida abrir faixa contra o escândalo da merenda, contra a Rede Globo, querendo as contas da Arena Corinthians, fez com que, pra mim – mesmo que eu não seja adepto da teoria da conspiração -, se criasse uma óbvia provocação que redundou na morte daquele rapaz inocente numa briga entre duas facções. Briga essa promovida pela secretaria de segurança. Porque, veja, vão presidente e diretor dos Gaviões a uma reunião com o promotor de justiça Paulo Castilho no fórum da Barra Funda. Eles saem de lá e são agredidos por gente de capuz e barra de ferro. Torcida organizada não briga assim, eles usam a camisa da torcida e é porrada. Quem faz isso a gente sabe. Polícia faz isso. Ninguém sabe quem foi. Ninguém anotou a chapa do carro. E, dois dias antes de jogar Corinthians e Palmeiras, prendem dois cara da Mancha Verde como se fossem os responsáveis! E não policiam nenhuma das estações de metrô como de hábito policiam. É um convite aos idiotas morderem a isca e fazerem a barbaridade que fizeram. E aí vem alguém e propõe o fim, a torcida única, a paz no cemitério. A autoridade não sabe como resolver o problema e proíbe. O Paulo Castilho está há 12 anos nessa função. Ele, que trabalhou no ministério do esporte e na CBF e lançou seu livro contra a violência no futebol na FPF, que ele deveria fiscalizar, não teve o bom senso de se dar por impedido na ação que o José Maria Marin (ex-presidente da CBF) moveu contra mim. Ele foi o cara do ministério público que chancelou a acusação. E eu o vi bajulando o Dr. Marin, pra cima e pra baixo. Vê como as coisas se encaixam?”