A morte é minha melhor amiga

Você sabe o que faz um necromaquiador? Conheça as funções de quem deixa os mortos com cara de vivos.

por / Ligia Roca / edição de arte / Estúdio Febre

COMO NELSON CAVAQUINHO, que disse em uma de suas canções: “depois que eu me chamar saudade / não preciso de vaidade”, nenhum morto de fato precisa. Mas para quem fica, velar o ente querido com uma boa aparência pode ser um conforto na última despedida. Eis que surge uma daquelas profissões que só se passa a conhecer em situações bem específicas: o necromaquiador. Quem vê o profissional chegar munido de uma maleta cheia de primers, bases, corretivos, sombras e batons pode confundir o evento. Não, não é casamento, é velório mesmo.

A morte é minha melhor amiga - Matéria - Revista Sexy

Imaginar a necromaquiagem como se fosse o embelezamento do morto para uma festa ou o simples retoque de imperfeições corporais, concepções mais comuns, é distanciar-se da essência do ofício. O serviço se propõe a algo sutil, quase imperceptível, conferindo ao falecido um aspecto natural, como se dormisse. A finalidade geral é dispor de um corpo apresentável para o velório, conservado até o sepultamento, sem vazamento de fluidos ou odores.

Quando a morte acontece de forma tranquila e o corpo chega em bom estado às mãos de Nina Maluf, 29, tanatopraxista e dona da Thanatology Capacitação Profissional, seu trabalho consiste em lavar todas as partes e realizar a tanatopraxia, nome dado à técnica de conservação de cadáveres com incisões e injeções de uma solução a base de formol nas artérias. Casos extremos, em que o organismo já iniciou a decomposição (como em situações em que o corpo precisa ser trasladado para lugares distantes ou em mortes de identificação tardia), pedem a aplicação do embalsamamento, procedimento que funciona como uma espécie de empalhação. Depois de higienizado o corpo, os órgãos são brevemente retirados para uma limpeza interna e acontece a substituição do sangue pela mesma solução de formol. O fim dos processos é sempre o mesmo: vestir a roupa, fazer a barba, ajeitar os cabelos, maquiar rostos e mãos, colocar tampões nos orifícios, ornamentar o caixão e despachar para a cerimônia de despedida.

A especialidade de Nina é reconstrução facial. “O IML atende mortes violentas ou suspeitas. Os corpos vinham de lá sempre muito detonados e a consequência era sempre o caixão estar lacrado. Não achava justo as famílias terem que enfrentar uma causa mortis traumática e não ter a chance de se despedir com o mínimo de decência”, ela justifica. As práticas envolvem preencher espaços dilacerados com algodão, suturar e cobrir a área com uma massa que, ao secar, se parece com a pele original. Para dar a cor certa, a maquiagem entra em ação.

O profissional precisa levar em conta aspectos da vida que aquele corpo tinha. Não adianta tacar um batom vermelho em uma senhorinha que nunca pintou os lábios. Da mesma maneira que é preciso acatar os pedidos deixados em vida. Miguel Carlos Faustino, 48, professor de necromaquiagem e tanatopraxia da WT Cursos, já foi contratado para preparar o corpo de uma travesti. Enquanto o irmão da falecida não se conformava com a ideia de a parente não ser enterrada como homem, a sobrinha bateu o pé sobre vestir a tia da maneira como ela sempre estava. “Carreguei bastante na maquiagem, a sobrinha me indicava as cores de sombra e também trouxe um batom escuro que era usado em vida”, diz. “Vestimos uma roupa com muito brilho. Só foi uma pena que não deu para calçar as sandálias. Eram muito altas e não couberam, mas deixamos na lateral do caixão.”

Outro ponto fundamental é estudar simbolismos religiosos para evitar constrangimentos. “Uma vez, coloquei um manto com uma imagem de Nossa Senhora estampada. Quando a família abriu o caixão, uma parte surtou e outra ficou calada. Até que um parente me explicou que eram evangélicos. Pedi desculpas superenvergonhada, desci com a urna e troquei por um manto branco”, conta Nina. “Adotei o branco para sempre depois disso”.

‘COMO ASSIM VOCÊ TRABALHA COM GENTE MORTA’

Nina se apaixonou pela profissão ainda criança. O avô, preparador de corpos na Faculdade de Medicina da USP, foi quem a levou para visitar as gavetas e preparar um corpo pela primeira vez, quando tinha somente 8 anos. “Surpreendi todo mundo. Lembro de ver aqueles tanques cheios de corpos e foi fascinante. Saí de lá dizendo que queria ser legista. E meu pai querendo me arrastar para o psicólogo, achando que eu estava louca”, lembra.

O choque semelhante ao do pai é uma constante na vida dela. “Credo! Como assim você trabalha com gente morta? Mas você consegue comer? Você dorme?”, são as questões mais comuns. A falta de informação sobre os bastidores da morte inevitavelmente respinga nos profissionais da área, tidos como sujos, mórbidos, nojentos. “O que as pessoas acham? Que antes de morrer elas vão cavar um buraco, se vestir, fazer todos os procedimentos para, no fim, a gente só ter que empurrar? Todo mundo vai precisar desse serviço um dia”, ela se indigna.

Nina sentia o preconceito até mesmo dentro de casa. Durante muito tempo, a família insistia em dizer que Nina não tinha uma profissão, mesmo ela se sustentando independentemente. A avó passou anos sem comer a comida que a neta preparava. Foi um processo lento de convencimento. “Eu argumentava: você comia a comida do vô, que era um senhor cozinheiro! Por que a minha não? E ela foi cedendo”, relata. Há dez anos em uma área fúnebre, Nina mantém-se brincalhona, costumando dizer que é melhor trabalhar com gente morta e fugir dos vivos.

O cotidiano é um desafio sob muitos ângulos e pode deixar marcas. “Essa história de que o profissional vira uma pessoa fria e insensível não acontece comigo”, diz Miguel. “Preparar criança é muito difícil sempre, por exemplo”. Durante a entrevista, ele descreveu um sonho que lhe tirou o sono na noite anterior. Era um rapaz que ele tinha aprontado dias antes e que, no imaginário onírico, circulava por vários cômodos de sua casa enquanto Miguel tentava alcançá-lo em vão. Ele atua há quatro anos, depois de tentar ser jogador de basquete, fisioterapeuta e cozinheiro. Miguel encontrou uma profissão, mas ganhou insônias frequentes.

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TABU
O velório é um ritual importante do ponto de vista da aceitação. Serve para que as pessoas próximas ao morto possam se dar conta da situação, permite conversar sobre quem se foi, dar espaço para as emoções, começar o processo de luto. A forma como a cerimônia acontece e, sobretudo, a aparência da pessoa amada facilitam a digestão dos fatos. Tudo para compensar o tabu que ainda é falar sobre morte. “A sociedade ocidental atualmente valoriza o excesso, as conquistas. E a morte é o oposto, entendida como o fracasso. Somos educados para acreditar que somos invencíveis, que podemos tudo. Com a morte não é assim que funciona”, diz a professora Maria Helena Franco, fundadora do LELu, Laboratório de Estudos e Intervenção sobre o Luto da PUC São Paulo. A tanatologia, que é o estudo do luto, ressalta que lidar de maneira mais consciente e corajosa com nossas pequenas limitações diárias pode ajudar no enfrentamento da morte quando ela chega. Maria Helena afirma que tentamos fugir para evitar a dor e a perda, sensações com as quais não estamos acostumados e que não queremos aprofundar.

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O enfrentamento talvez nem seja contra a morte, mas contra a aceitação de que a vida é finita, para quem morre e para quem fica. Um indicativo de que a perda talvez não seja bem assimilada é o fato de a parte física do ritual ser delegada pela família. “Na nossa cultura, sobretudo no meio urbano, não se vê como uma coisa natural o cuidar do corpo. O corpo é pra ser escondido. Inclusive na hora da morte”, explica a especialista. “A coisa mais rara é as pessoas morrerem em casa, por exemplo. Se entende, equivocadamente, que morrer em casa significa não fornecer cuidados ao doente. Os cuidados também são delegados. É a ideia de que morrer não é natural, algo a ser evitado.”

“Se a família quiser vestir o ente, tudo bem. Mas se a gente tem que fazer uma tanato, os familiares não podem participar, porque é um processo muito pesado. Imagina você ver o seu parente aberto e alguém tirando os órgãos de dentro dele”, Nina argumenta. Não foi o caso de Sueli Menezes, 40, enfermeira e instrumentadora cirúrgica. Em dezembro de 2014, quando sua mãe morreu por complicações ligadas a uma hérnia, ela optou por ajudar na preparação do corpo. “Quis estar presente, prestando uma homenagem para minha mãe. Não é normal um parente estar ali, minha família e a equipe do cemitério estranharam bastante”, ela recorda.

“Sou espírita, acredito que a morte é apenas o fim de um ciclo. Tento refletir muito mais sobre a minha vida, como viver da melhor forma possível neste mundo. Mas também entendo que a morte é a minha melhor amiga, é o que dá sustento para minha família”, reflete Nina. Quando o assunto é repetido com frequência fica mais fácil incorporá-lo ao dia a dia não só da preparadora de corpos, mas também de quem convive com ela. É comum Nina chegar em casa e seus filhos, de idades entre 3 e 14 anos, perguntarem curiosos quantas pessoas morreram naquele dia ou quantos corpos a mãe preparou. Quando eles querem aterrorizar alguém, soltam de cara “minha mãe trabalha com morto”. Recentemente, Nina foi chamada à escola de sua filha do meio porque a professora não entendia o motivo de Verônica, de 8 anos, desenhar tantos caixões e mantos. “Claro que para mim era óbvio. Expliquei que ela desenha o que vê em casa, são meus instrumentos de trabalho”, rebate.

VALORES
Nina cobra de R$ 5 mil a R$ 10 mil por chamada. Ela admite ser um valor alto, mas justifica que é equivalente à demanda exigida. Muitas vezes a família contrata o serviço completo, que inclui, além da necromaquiagem e da tanatopraxia, organizar a documentação do óbito, liberar o corpo, cuidar do transporte até o laboratório e depois até o lugar do velório. Ela também permanece no cemitério até o sepultamento, fornecendo apoio à família e atuando em possíveis eventualidades. O preço varia de acordo com o tipo de morte, o grau de dificuldade da burocracia e a disposição e agilidade da família contratante.

Outra parte de seu orçamento vem dos cursos livres que ministra por todo o país. O básico de necromaquiagem e tanatopraxia é o mais procurado e custa R$ 2 mil. São quatro dias, um teórico e três práticos, com corpos de verdade nos laboratórios com os quais ela tem parceria. Os alunos aprendem os procedimentos de como preparar um cadáver, desde a necrópsia (procedimentos para apurar a causa mortis) até o corpo estar fechado, pronto para o velório. Nina elenca três perfis de alunos interessados: os que descobrem que o curso não é para eles logo na primeira vez que veem um morto (alguns até desmaiam, ela conta); os que querem aprender um novo ofício e seguir na carreira; e os que já são agentes funerários e estão em busca de uma reciclagem ou de um certificado da Anvisa para atuar no setor.

Nem todo mundo ganha como Nina, mas é inegável a prosperidade desse mercado fúnebre que não cessa. Possivelmente, o atrativo financeiro é o que fez aumentar o número de matrículas nos últimos dois anos, tanto particulares como nas escolas. Diversos alunos, que já trabalhavam como autônomos, relataram buscar o curso para complementarem suas rendas. Uma necromaquiagem simples, que dura cerca de 40 minutos, pode custar entre R$ 150 e R$ 250. E óbito é o que não falta. Basta ter estômago.

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