Confrontos entre o Judiciário e empresas tech revelam o que, de fato, está em jogo quando o assunto é privacidade.
por / Tiago Mota
NO DIA PRIMEIRO DE MARÇO deste conturbado ano, o vice-presidente do Facebook para a América Latina, Diego Dzodan, foi preso preventivamente no Brasil e liberado 24 horas depois. O motivo: o Facebook, dono do WhatsApp, não cumpriu ordens da Justiça de liberar o conteúdo das mensagens no aplicativo de alguns de seus usuários, investigados por tráfico de drogas.
Caso semelhante eclodiu nos Estados Unidos, no qual o FBI exigiu da Apple a quebra da criptografia de iPhones para analisar o conteúdo das conversas entre autores de um ataque terrorista em San Bernardino, na Califórnia, que matou 22 pessoas em dezembro de 2015. A empresa se negou a fazê-lo, recebendo o apoio de outras grandes, como o próprio Facebook e o Google. Também em março, o FBI conseguiu hackear o smartphone sem a ajuda da Apple.
DIEGO DZODAN, VICE-PRESIDENTE DO FACEBOOK PARA A AMÉRICA LATINA, FOI PRESO E SOLTO 24 HORAS DEPOIS POR NÃO CUMPRIR ORDENS DE LIBERAR O CONTEÚDO DO WHATSAPP PARA UMA INVESTIGAÇÃO DE TRÁFICO DE DROGAS.
Embora com proporções diferentes, ambos os casos são similares: faces de um conflito entre público e privado que tende a ser comum. Para o jurista especializado em direito digital, Fabricio da Mota Alves, trata-se de um “paradoxo de mercado”.
Para além dos episódios em si, há dois movimentos complementares correndo no profundo da discussão. “Vivemos um tempo de hipervalorização de direitos individuais, como a privacidade. Nós, aqui no Brasil, já tivemos uma ditadura militar e sabemos as consequências de um Estado controlador. Por isso, passamos para uma Constituição que opta por privilegiar a proteção ao indivíduo”, comenta Fabricio. “A partir desse ponto, as tecnologias digitais passaram a lidar com isso de uma forma competitiva. As empresas de tecnologia começaram a montar negócios no sentido de oferecer mais e mais proteção individual. A privacidade se tornou um produto, uma commodity.”
A busca por proteção fez com que as empresas criassem altos níveis de criptografia não acessíveis nem por elas mesmas, abrindo mão do controle do conteúdo compartilhado em seus aplicativos. No começo de março o WhatsApp informou que as mensagens compartilhadas no app passarão a ser criptografadas em ambas as pontas, de quem manda e de quem recebe. Na prática, é uma medida que protege ainda mais a privacidade do usuário e, indiretamente, serve como resposta às tentativas do Judiciário brasileiro de ter acesso a esses conteúdos.
Tanto no caso brasileiro quanto no americano, nem Facebook nem Apple têm acesso aos dados exigidos pela Justiça de cada país. Se armazenassem tais dados, seus usuários deixariam de se sentir protegidos e, consequentemente, migrariam para outras plataformas e gerariam prejuízos. Lembre-se: sua privacidade é um bem de mercado.
TIM COOK, CEO DA APPLE QUE SE NEGOU A QUEBRAR A CRIPTOGRAFIA DE IPHONES PARA O FBI ANALISAR CONVERSAS ENTRE RESPONSÁVEIS PELO ATAQUE TERRORISTA DE SAN BERNARDINO.
Ainda que, hipoteticamente, as empresas de tecnologia tivessem controle de todo o conteúdo compartilhado por seus usuários, fornecê-los ao Estado abriria uma prerrogativa perigosa, como a própria Apple argumentou em carta aberta. “Decisões como essa podem criar jurisprudência para que juízes e promotores exijam acesso a dados sempre que quiserem, sem questionamentos e sem garantia de proteção da privacidade”, afirma Fabricio. Imagine se seus nudes caíssem nas mãos do Sérgio Moro…
No caso brasileiro, o nosso recente Marco Civil da Internet nem exige das empresas que elas arquivem conteúdos de uma conversa do WhatsApp, por exemplo. Tudo o que o Facebook pode fornecer são data e hora de acesso e endereço de IP de quem acessou – isto sim, previsto pelo Marco Civil. “O Estado fica, então, em uma posição delicada. É dele a responsabilidade de produzir provas contra um suposto traficante, mas, com a hiperproteção da privacidade, ele não consegue”, opina Fabricio.
Porém, ao assumir como legítimo o discurso das empresas, de que o acesso a esses dados abriria uma exceção perigosa, corre-se o risco de cair em uma ingenuidade. Gente bacana como o Facebook já usa nossos dados para fins comerciais que, por muitas vezes, são alheios a nós. Edward Snowden já cansou de dizer que nossas informações mais pessoais circulam por aí com a maior permissividade, inclusive entre empresas e entre estatais.
E aí se dá o paradoxo: por excesso de zelo à nossa proteção individual e para garantir a viabilidade de um modelo de negócio, abre-se mão do suposto interesse comum, que seria o do Estado. Mas, ao exigir à força o acesso aos dados, o próprio Estado fere a nossa proteção individual, tão cara aos valores ocidentais. Dá-se um conflito com altos custos de ambos os lados.
Voltamos, então, à pergunta título desta coluna: qual é o custo do Facebook? Qual é o custo da nossa vida tecnológica? Para compartilhar suas fotos, vídeos e memes, você deverá abrir mão, ainda que não saiba, de valores que já foram muito caros. Um deles é a influência preponderante exercida pelo Estado como o único interessado, em tese, pelo bem comum. Teremos de nos acostumar com casos frequentes de uma Justiça mais impotente diante do indivíduo.
Fabricio Alves já atuou como advogado de empresas de tecnologia. Defendendo a não obrigatoriedade das mesmas de fornecerem certas informações às autoridades, ele também reconhece o problema que isso pode gerar. “A internet é o único meio de comunicação que o Estado não regula. É uma operação que eminentemente responde a interesses privados”, pondera Fabricio. “O mundo vai ter que parar um momento e pensar sobre como essas coisas maravilhosas que nós criamos podem gerar problemas.”
Se o interesse privado se impõe ao público, cabe ao público, por meio de seus legisladores, impor barreiras ao privado. Isso também terá custo: um freio brusco na inovação tecnológica. “Ações como a que prendeu Diego Dzodan impactam a imagem do país como oportunidade de negócio”, opina Fabricio. “Ou a gente acredita no Facebook, na sua incapacidade de controlar os dados de seus usuários, ou impõe mecanismos para que ele prove sua palavra e, assim, dificulte sua atuação.” Qual custo sairia mais alto?