Bike Anarquia

Pedal, noitadas e até competições insanas se misturam em encontros de tribos das bikes de uma marcha só: eventos que têm unido alucinados por bagunça (e magrelas, claro), dando luz à mais atual e divertida cena da contracultura do esporte.

por / Bruno Romano

UMA SÓ MARCHA DE BIKE é suficiente para ir longe. E para fazer muito estrago também. Se você duvida, é porque não ouviu falar das famosas single speed, bicicletas que, como o nome diz, só têm uma opção de velocidade. Praieiras, urbanas ou de montanha, desde que não haja opção de aliviar o pedal. Essa cena é celebrada em dois eventos “esportivos”. De um lado a brasileira FixOlimpíadas, que reuniu pela sexta vez no país, no mês de outubro último, alucinados por bikes fixas (celebradas mundo afora pelos hipsters e cujo sistema de pedalada está fixado às rodas. Aquele que, se você pedalar para trás, irá pra trás), em Floripa, SC. De outro, o Single Speed World Championship (SSWC) – que de pomposo só tem o nome -, que, também em outubro, reuniu em um show de bizarrices no Japão, bikers de todo o planeta fanáticos por magrelas de uma só velocidade.

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Para saber o que isso significa, pense no brinquedo libertário que é a bike. Misture um poderoso coquetel de suor, endorfina, zoeira coletiva e bebedeira. Adicione provas malucas e finalize com combinações cheias de estilo. É assim, erguendo a bandeira da contracultura do ciclismo competitivo, que essas provas envolvem cada vez mais gente.

Ainda não entendeu? Melhor. Em eventos como esses não há estatutos ou regras rígidas. Tudo pode acontecer, e essa é a graça. Na prática, eles congregam uma galera gente boa que curte pedalar forte e que não perde a chance de se divertir, não necessariamente nessa ordem.

Cenas da FixOlimpíadas 2015, evento onde estilo, competição e zoeira andam lado a lado

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O (VERDADEIRO) ESPÍRITO OLÍMPICO
ENTENDA AS PRINCIPAIS MODALIDADES DAS FIXOLIMPÍADAS

PEANUT
Equilibre-se em sua bike dentro de um espaço reduzido e derrube todos os seus amigos sem cair. Só sobrou você? Comemore.

TRACK STAND
Mantenha o balanço, em cima da bike, pelo máximo de tempo que conseguir, sem colocar os pés no chão – dessa vez sem ninguém te atrapalhando.

SPRINT (ou Dual)
O famoso “racha” entre ciclistas. Mano a mano. Ou mina a mina. Simples: uma largada, uma longa reta e uma linha de chegada.

SUBIDA
Fácil: seja o primeiro a completar a pirambeira mais inclinada da sua vida (com uma marcha só).

CRITÉRIO (ou Criterium)
Ciclistas competem em um circuito fechado, com várias voltas, em que vence o primeiro a completar a distância estipulada. Detalhe: quem tomar uma volta do líder é cortado.

SKID
As freadas são parte da cultura fixer. Como as bikes não costumam ter freio (apenas as de iniciantes), o contrapedal faz a função. A melhor mostra de como parar sua magrela vence.

FREE STYLE
Faça o que bem entender. Conquiste o público. Corra para o abraço.

PROVA DO ROLO (ou Roller Race)
Dois ciclistas disputam lado a lado uma distância curta pedalando em um “rolo”, instrumento usado em treinos de ciclismo, em que a roda traseira fica presa ao rolo e gira sem a bike sair do lugar.

ALLEY CAT
Celebra a cultura de provas underground em grandes centros urbanos. O objetivo é completar primeiro um trajeto passando por pontos marcados (check points) na cidade, tudo em meio ao trânsito.

[2] Prova de Critério no kartódromo de Floripa; [3] Fixeiros reunidos na torcida, e o bom e velho “repositor energético” de cevada.

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Um dos competidores da FixOlimpíadas 2015, o gaúcho Gustavo Corrêa, tenta colocar em palavras a zona coletiva: “A linha entre as provas e a zoeira é muito tênue, vamos da prova pra zoeira, da zoeira pra prova… Tudo simplesmente vai acontecendo durante o dia, regado a cerveja e rango de rua”. É por isso que, mais do que competições, estamos falando da celebração de culturas bem particulares, além de uma honesta busca por bons lugares para rodar com as magrelas e dividir conhecimentos, truques e histórias.

Vencedores? Premiações? Pois não: o SSWC coroa o “campeão mundial” com uma tatuagem feita na hora com o logo do evento de cada ano. Se não estiver disposto a ganhar uma, é porque você está no lugar errado (ela é feita por um tatuador fera). O evento também distribui bons equipamentos de bike para quem se destaca, seja nas provas ou nas fantasias (claro que o pessoal vai fantasiado), e ainda rega a galera com comida e cerveja de qualidade, uma forma bem honesta de usar a grana de inscrição. Nas FixOlimpíadas, prêmios como quadros de bike, peças e acessórios também fazem parte da festa. Ainda que sejam apenas um detalhe.

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“O lema é camaradagem”, resume Marcella Olinto, “fixeira” de Floripa e uma das organizadoras do último FixOlimpíadas. “O evento é feito por todos, na base da colaboração e integração”, explica. Isso significa que se você for de outra cidade provavelmente vai achar um canto na casa de um competidor local. Também quer dizer que você pode acabar tendo a missão de servir chope pra galera ou até ajudar a organizar a próxima prova mesmo depois de completar uma subidaça o mais rápido possível.

“A interação começa no primeiro minuto; por isso, muita gente queima a largada e já começa o evento bêbado”, entrega Fabrício Brochier, gaúcho de Novo Hamburgo que vive em Floripa e também meteu a mão na massa no evento de 2015. “Mesmo a minoria que se cuida para competir também está em busca de zoeira”, completa. Entre badernas e desafios esportivos, a FixOlimpíadas 2015 celebrou provas tradicionais na cena como Critério, Peanut e Sprint. Com cerca de 150 inscrições para as provas, os organizadores estimam em 400 o número de envolvidos em cima das bikes e fora delas. Inclua nessa estatística bikers de lugares distantes como Manaus e até Buenos Aires, na Argentina.

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É claro que o álcool serve de combustível para a galera. Ainda que não seja só isso que faça o povo se reunir. Como diz Fernando Teixeira, do grupo Fixed Gear Brasil: “Entre todos os estilos de bicicleta, a bike fixa carrega com ela um público muito jovem que se opõe à mesmice da cultura nacional de que ter um carro é ser melhor do que alguém”. Encontrar gente que pensa de forma parecida dá força e motiva ainda mais. O grupo de Fernando também funciona como uma plataforma de mídias sociais que promove acontecimentos da cena no país. A divulgação vai desde produtores de peças nacionais até treinos de alta performance, passando por passeios que têm como destino um bom boteco.

Se estados como SP, RJ e RS já estão mais consolidados no assunto, com equipes que treinam juntas e com empresas voltadas para ciclistas urbanos, outros cantos do país estão crescendo. “Sediar um evento como esse já fez com que o pessoal de Floripa evoluísse bastante”, confirma Marcella Olinto. O tamanho de cada evento é mais bem medido pela integração geral (nas provas e na bebedeira) do que por números, recordes ou feitos.

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Corta pro Japão. A bagunça sobe ainda mais uns bons três degraus durante o 14º “mundial de mountain bikes de única marcha”, o tal SSWC. Na busca pura e simples por diversão, uma boa definição da competição vem do norte-americano Chris Reichel. Autor do sarcástico blog de ciclismo Drunk Cyclist, Chris se apaixonou pelo SSWC a ponto de ir para o Alasca em 2014 e para o Japão em 2015, últimas duas sedes do evento. “Nós já somos idiotas o suficiente. Apenas demos um passo adiante, encarando trilhas no mato com uma só marcha. E, claro, com muita festa antes e depois”, resume Chris. Para entender melhor o que caras como ele têm na cabeça, esqueça o que você sabe – tanto faz se é muito ou pouco – sobre bike. Não pense em lycras, roupas apertadas ou chips de cronometragem. Visualize mais um bando demarmanjos e garotas dispostos a se fantasiar de qualquer coisa, de desenho animado a bonecas de porcelana.

No ano passado, no Japão, a reunião do SSWC começou em alto estilo. Empunhando machados afiados, os anfitriões japoneses se juntaram a uma meia dúzia de gringos para arrebentar barris e garrafas de saquês. Com todo mundo devidamente aclimatado, o evento foi oficialmente aberto. Com mais festa, óbvio.

Pedaladas insanas, bebedeira e até futebol na bike: momentos clássicos do Single Speed World Championship 2015, no Japão.

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Ao som de tambores e instrumentos típicos, a galera foi calibrando as doses enquanto um artista local pintava em um grande painel o emblema oficial de 2015. Dois dias depois, o desenho acabaria na panturrilha de um sujeito conhecido como Angus, que venceu a corrida principal e sagrou-se campeão. Em meio à farra está o pequeno e sorridente ciclista amador Koh Kitazawa. “Eu devo ter sido o primeiro japonês da história a correr um SSWC”, conta Koh, se lembrando do evento em 2010, na Nova Zelândia. EUA, África do Sul e diversos países da Europa também já sediaram a competição, que chegou à Ásia pelaprimeira vez em 2015.

Koh era um novato no mountain bike quando descobriu o SSWC na internet: “Achei aquilo divertido. Era diferente de tudo o que existia na cultura de ciclismo do Japão”. Como um bom iniciante, Koh foi atrás dos organizadores do SSWC e expressou seu desejo de fazer um evento japonês. Ouviu como resposta algo como: “Vai em frente, cara, simplesmente faça!”. Dois anos depois, Koh reuniu 320 competidores, no SSWC 2015.

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“É um evento de bike, mas as pessoas e a cultura contam muito mais. Cada um tem seu estilo, mas a tribo compartilha uma natureza comum, misturando loucura (e um pouquinho de seriedade) com generosidade e personalidade. E uma enorme devoção à cerveja”, brinca Koh. A prova principal de 2015 contou com um percurso cascudo e cheio de lama. Para melhorar, um grupo de americanos aproveitou o fato de a largada ser no estilo Le Mans, quando os atletas têm de correr até suas bikes, para trocar todas as bicicletas de posição. Nem a organização sabia. Pronto, a zona estava completa. E a corrida começou aindacom mais cara de SSWC.

Espalhadas por todo o planeta, as novas cenas de bike single speed, seja com bicicletas de montanha robustas ou com magrelas urbanas “fininhas” e cheias de personalidade, têm ganhado seu espaço. Em meio a um estilo particular, também há uma busca por praticidade e simplicidade. Depois de um bom tempo pedalando de BMX, com bikes de aro 20, em que imperam os saltos e as manobras, o gaúcho Gustavo Freitas experimentou uma fixa, mesmo duvidando de que iria gostar. “Parecia ser muito sem graça, mas logo peguei gosto pelas corridas e principalmente pelo minimalismo que a bike fixa representa”, diz. “Não há marchas, nem a necessidade de utilizar freios, já que a velocidade é controlada exclusivamente com a intensidade da pedalada”, completa.

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Gustavo foi um dos representantes do grupo de fixeiros 200Psi, original de Pelotas, RS, que marcou presença nas FixOlimpíadas 2015. O 200Psi é uma equipe de bikers que treina e compete, ainda que o foco “na verdade, é na zoeira”, como define Gustavo. O pedal também serve para encontrar amigos e se deslocar por aí. Fora da bike, o grupo fabrica roupas. Atividades parecidas têm se espalhado pelo Brasil, e eventos como as FixOlimpíadas costumam bombar o nicho. É uma bola de neve, como explica Gustavo Corrêa, fixeiro do Fixed Gear Blumenau (FGBNU), outra trupe do sul do país. “A cada edição, a cena cresce, reunindo mais gente e criando oportunidade de mercado”, diz. “Isso atrai patrocinadores, que no geral acabam sendo outros fixeiros, suprindo necessidades que eles mesmos tinham quando ingressaram no universo. A cena se alimenta independentemente de gente de fora com dinheiro”, explica. E mais: a dedicação às bikes e a adoração pelo pedal ajuda a promover o uso urbano de bicicletas em grandes centros, fortalecendo também a cultura do ciclismo em geral.

Enquanto isso, no Japão, o pessoal estava bem ocupado. A preocupação era se embebedar com um objetivo honroso: criar disputas para escolher a sede do mundial de single speed em 2016. “Estávamos todos completamente bêbados quando decidimos fazer três jogos”, conta Koh Kitazawa.

[8] Equipe das FixOlimpíadas coloca pilha antes das provas; [9] biker acelera durante a prova indoor do rolo, [10] e competidor festeja no “pódio”.

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No primeiro deles cada equipe tinha de levar pequenos grãos de feijão de uma tigela a outra, com um importante detalhe: equilibrando-os em palitinhos segurados pela boca. No segundo jogo, também típico no Japão, duas pessoas entram em uma mesma roupa, uma colada à outra. O sujeito da frente precisa comer e beber, mas quem lhe dá as guloseimas é o amigo de trás. Vence quem conseguir terminar o rango primeiro. Sabe-se lá como, Austrália e Bélgica superaram África do Sul e Estados Unidos nas brincadeiras e foram para a grande final. O duelo decisivo aconteceu na forma de futebol jogado com bicicletas. Trombadas pra cá, risadas pra lá, e o placar marcou 1 a 0 para a Austrália. Fim de papo. Significa que, em 2016, grande parte desses malucos vai se reunir novamente para se lembrar do que aconteceu no Japão, enquanto uma nova confusão coletiva se instala em solo australiano. O evento deve acontecer em outubro, provavelmente em Melbourne.

Por mais que o SSWC e as FixOlimpíadas tenham grandes diferenças, eles surgem de uma essência comum. A paixão pela bike (e a liberdade que ela traz consigo) sobe de nível, transcende o objetivo e materializa um encontro poderoso e transformador – tudo por causa de uma marcha só. Não é uma revolução no esporte, mas outra forma bem divertida e integradora de enxergá-lo. Nesse embalo, a onda ganha mais força, bem no ritmo das bikes single speed. Silenciosas. Ágeis e ariscas. Em alta velocidade.

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