É menino ou menina?

Não é da sua conta, mas a transexualidade é. E já passou da hora de falarmos abertamente sobre isso.

por / Bianca Castanho / fotos / Marcus Steinmeyer

SE VOCÊ é aquela pessoa que acha que trans é “mulher com pinto”, “homem com xoxota” ou até mesmo que é “tudo aberração”, pode parar por aí. Esse tipo de pensamento é preconceituoso e sem sentido. E pode ser até babaca, se você continuar repetindo essas besteiras depois de ler esta reportagem. Por isso, e para não sobrar dúvidas sobre a transexualidade, vamos explicar tudo desde o começo (e o começo é falar transexualidade, e não transexualismo, já que o “ismo” é usado para doenças ou ideologias).

É menino ou menina? - Matéria - Revista Sexy

Um dos pilares da nossa sociedade é o gênero binário. Ou seja, essa ideia diz que só é possível ser homem ou mulher. Seguindo esse caminho, homem gosta de azul e é forte, mulher gosta de rosa e é delicada. Esses estereótipos foram criados pela sociedade e valem para você antes mesmo do nascimento. Manja a pergunta: “É menino ou menina”? O problema já começa aí. É como se existissem duas caixinhas, e qualquer indíviduo tenha que estar dentro de uma delas. Mas e quando nenhuma dessas caixinhas parece servir? O que estamos dizendo é que gênero não tem nada a ver com o pintinho ou a pepequinha da criança.

De maneira simplificada, é aí que entram os transexuais. No geral, as pessoas transgêneras não se sentem confortáveis com o corpo que nasceram; o gênero com que elas se identificam não é o mesmo que foi designado ao nascer.

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“É um desafio explicar para as pessoas que só porque eu tenho uma vagina não significa que eu seja mulher. Fomos ensinados a determinar o gênero de alguém baseado no que ela tem no meio das pernas. Isso precisa ser revisto”, comenta o ator e ativista trans Buck Angel. Resumindo: criar caixinhas é praticamente impossível, porque cada um é de um jeito.

“Eu não me vejo como homem, porque eu me vejo mais como uma bichona. Eu não queria vestir roupa de mulher, mas roupa de homem hétero é muito sem graça. Quando alguém fala que eu sou homem, eu digo que sim para não alongar muito o papo, mas gosto de usar o trans para dizer que não sou mulher”, comenta o artista e performer Ariel Nobre, 28.

É mais ou menos o mesmo caso da cartunista trans Laerte Coutinho, pra quem o grande lance é a liberdade. “Eu brigo pela liberdade de expressão de gênero, para a pessoa poder se declarar o que ela quiser – inclusive nada, não tenho gênero. Todas as identidades são interessantes do ponto de vista de agitação, de reivindicação de pontos. É bom para o movimento, mas acaba se tornando uma prisão. Se te serve, beleza, se está pesando não precisa, ninguém é obrigado. Atualmente me vejo como uma pessoa trans, identificada com o feminino. Me sinto feminina, e é isso”, exemplifica Laerte.

E isso não tem nada a ver com operação ou sexualidade. Se você nasce com orgão sexual masculino, mas se identifica como uma mulher, isso basta para você ser uma mulher transgênera, ou trans. Se você olha para baixo e seu corpo e sua cabeça estão falando a mesma coisa no quesito gênero, então você é cisgênero, ou cis.

A professora doutora em sociologia da UFRN, Berenice Bento, uma mulher cis que estuda transexualidade e gêneros há 16 anos, explica que “não é possível definir a identidade de gênero pela ausência ou presença de uma genitália. É preciso respeitar a autodeterminação de cada um”. Ou a famosa frase: cada um cuida do seu.

Já a sexualidade, ou a vontade de chacoalhar as molas da cama com outra pessoa, é independente. Ou seja, pode haver um homem trans, com vagina, que faz sexo com mulheres cis. Ou uma mulher transgênera, com pênis, que goste de mulheres cis. E por aí vai. É livre.

Se você acha que todo esse papo é novidade, saiba que a primeira nota que se tem sobre o assunto apareceu no artigo “Psychopathia Sexualis” (1886), do psiquiatra alemão Richard von Krafft-Ebing. Ele falava sobre hermafroditismo psíquico – ou seja, uma pessoa que tem os dois gêneros mas de forma mental, não biológica. O sexólogo americano David Cauldwell bebeu muito dessa fonte ao escrever, em 1949, seu artigo “Psychopathia Transsexualis”, em que descrevia indivíduos que não assimilavam o seu sexo designado no nascimento com sua identidade de gênero. Mas foi com o endocrinologista alemão Harry Benjamin, a partir de 1954, que a transexualidade virou pauta de discussão, já que ele começou a ministrar hormônios para seus pacientes.

MEU CORPO, MINHAS REGRAS
Se você não se reconhece no próprio corpo, muito provavelmente também não se reconheça no nome que você recebeu. Percebe? Então, bem-vindo a uma das maiores lutas dos transgêneros: o nome social.

Parece simples escolher um nome com o qual se identifique e pronto. O grande problema é que mudar o nome na documentação não é fácil e demora. “É muito burocrático, você tem que ir atrás de dados que você nem sabia que existia. Depois, até sair o RG com o nome social demora um tempão”, explica a maquiadora trans Ledah Martins, 24, que ainda não teve os documentos modificados.

O projeto Lei João Nery (PL 5002/ 2013), que é conhecido como Lei da Identidade de Gênero, clama por um direito simples para a comunidade transgênera: a liberdade da expressão de gênero; ou seja, você poder se declarar o que quiser sem precisar da aprovação de ninguém. Na Argentina, a Ley de Identidad de Género, em vigor desde 2012, é uma inspiração direta para essa emenda ser aplicada no Brasil. No entanto, o projeto ainda está sendo analisado, sem previsão de aprovação. A demora retarda a evolução da discussão com toda a sociedade e dá espaço para que ainda ocorra algum tipo de transfobia, ou seja, preconceito.

E isso pode acontecer tanto em pequenos detalhes, como uma simples ida ao médico, quanto em eventos catastróficos, como a violência sexual. “Ir ao médico é um problema, porque sua ficha está com o seu nome de registro, e você pede para te chamarem pelo nome social e a pessoa simplesmente diz que não”, relata o publicitário Samuel Silva, homem trans de 22 anos. Ledah também fala de uma das tensões mais comuns a que a comunidade trans é submetida diariamente: o uso do banheiro. “Uma moça num escritório, depois que descobriu que eu era trans, disse que tinha deixado eu usar o banheiro feminino antes, como se fosse errado. Eu expliquei que podia usar, afinal sou mulher… Ela me disse que não, só se eu fosse operada.” Para Samuel, o mais seguro é esconder a identidade: “Enquanto as mulheres trans são humilhadas nos banheiros, nós corremos o risco de ser violentados”. Enquanto isso, a Casa Branca já criou um banheiro de gênero neutro, para quem não se identifica com a binaridade. Saca a diferença?

A intolerância com as pessoas transexuais por aqui é refletida em proporções mundiais. Segundo a ONG Transgender Europe, que faz um monitoramento mundial de assassinatos de travestis e transexuais, o Brasil é o país que mais mata trans no mundo. No continente americano, nossa pátria amada é responsável por cerca de 51% dos assassinatos a pessoas trans, seguido por México, que representa 14%. Isso significa que, de 2008 a 2014, foram mortas 689 por aqui, enquanto o México soma 194 e a Itália, por exemplo, 28 pessoas mortas no mesmo período.

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“NÃO É POSSÍVEL DEFINIR A IDENTIDADE DE GÊNERO DE UMA PESSOA PELA AUSÊNCIA OU PRESENÇA DE UMA GENITÁLIA. É PRECISO RESPEITAR A AUTODETERMINAÇAO DE CADA UM.”

O pior desse cenário é que a conscientização ainda está caminhando com passos de formiga e sem vontade. “Estamos vivendo um levante conservador no Brasil. A pressão desse nicho conseguiu mudar o Plano Municipal de Educação da cidade de SP ao retirar dele os dispositivos para prevenir a homofobia”, explica Leo Moreira Sá, ator trans e ex-baterista da banda As Mercenárias. Para a vocalista trans da Banda Uó, Mel Gonçalves, o tema deve ser introduzido no cotidiano das pessoas desde cedo. “Precisa ser estudado na escola, tem que ter leis de proteção aos transexuais, os próprios trans precisam ter oportunidade de estudar.”

É isso mesmo que você leu. No Brasil, o preconceito é tanto que “travestis e transexuais são quase todas analfabetas, porque não suportam viver na escola, é o lugar do terror”, afirma a socióloga Berenice Bento. É ainda muito difícil ver histórias como a da adolescente Jazz Jennings, que fez transição aos 5 anos, foi garota-propaganda da marca Clean & Clear no começo de 2015 e integra a lista da revista Time dos 25 jovens mais influentes dos EUA; ou da pequena Joppe, a garotinha holandesa de 13 anos do documentário I Am a Girl!, que, ao mudar de escola, pediu para a professora se poderia explicar para a sala que ela era transexual.

No Brasil as coisas não melhoram quando a pessoa entra no mercado de trabalho. “A sociedade não está preparada para nós”, declara a cabeleireira trans Emily Domingos, 23. Depois de ser a única candidata rejeitada em uma seleção para trabalhar em uma rede de supermercados, ela conta que desanimou e foi para uma área em que seria mais bem aceita. “Eu fui a única que não passou em uma prova de quinta série, e eu sei que era porque sou transex. Resolvi unir o que eu gostava com onde me aceitariam melhor.”

A história de Emily não é uma exceção dentro da comunidade trans. A dificuldade em conseguir empregos é apenas um sintoma. “As pessoas são preconceituosas. Já fui fazer dinâmica em escritório, passei em tudo, e na hora de preencher a documentação o tratamento mudou. Eu coloquei meu nome social entre aspas, e me trataram pelo meu nome masculino. Se na entrevista me trataram assim, imagina trabalhando lá?”, diz Ledah. É por isso que, num cenário caótico e emocionalmente instável, muitas trans acabam indo para a prostituição, o que contribui para a marginalização.

Pensando em criar oportunidades, plataformas como o TransEmpregos (transempregos.com.br) ajudam as pessoas trans a encontrar trabalhos. A mulher trans Márcia Rocha, 50, foi uma das responsáveis pelo projeto. “Nós temos 460 fichas, e eu participo do Fórum LGBT de Empresas. Por isso vou tentar ajudar as pessoas a encontrar um emprego, mas é complicado. Já aconteceu de termos 180 fichas e nenhuma vaga, porque as empresas têm receio de anunciar parceria com a causa LGBT. É um processo lento, mas estamos trabalhando nele.”

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“A GENTE VIVE COM MEDO. MINHA MÃE DIZ QUE, QUANDO EU SAIO DE CASA, ELA TEM RECEIO DE QUE EU NÃO VOLTE.”

A TERCEIRA MARGEM
“Essa é a população mais marginalizada do Brasil, não tenho a menor dúvida. Por exemplo, os negros sofrem, mas têm a família. Agora as transexuais são expulsas de casa, porque as famílias têm vergonha delas”, arremata Berenice.

Colaborando para aumentar o preconceito, a transexualidade ainda integra a lista da Classificação Internacional de Doenças (CID), feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Sim, ainda hoje a transexualidade é considerada um Transtorno de Identidade de Gênero, mas o cenário deve mudar na próxima atualização da lista, prevista para o começo de 2016. É um passo importante, já que as pessoas trans ainda são consideradas doentes. “Eu tenho um CID, eu sou considerada uma doente, e, para quem quer fazer a cirurgia (de transgenitalização) aqui, é preciso aceitar o fato de que você é um doente mental”, comenta Mel.

Ela ainda denuncia que a maior parte da sociedade é muito ignorante no que diz respeito às trans. Aliás, uma coisa importante que você precisa aprender: transexual e travesti são duas coisas diferentes.

A travesti se identifica com seu corpo, mas tem vontade de se expressar como o gênero oposto. Já a trans, não se identifica com o corpo em que nasceu.

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“O BRASIL É O PAÍS QUE MAIS MATA TRANS NO MUNDO. NO CONTINENTE, REPRESENTAMOS 51% DOS ASSASSINATOS.”

GUERRILHA E INCLUSÃO
A falta de recursos já incentivou homens e mulheres a tomar medidas drásticas: “Tive problemas de saúde sérios por tomar hormônios por conta própria, não recomendo pra ninguém”, explica o homem trans Robis Ramires, 21. Por isso, programas como o Processo Transexualizador podem ser considerados um avanço. Em vigor desde 2008, o programa é oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e contempla a administração de hormônios e a cirurgia de transgenitalização (para te dar um toque: falar cirurgia de mudança de sexo não é errado, mas também não é certo. O termo transgenitalização é melhor porque o que muda é só a genitália). “Nem toda trans é operada, mas acredito que a maioria queira mudar o sexo biológico. A fila está enorme até para quem já faz parte do programa. Eu marquei exames para daqui a 5 meses”, diz Ledah Martins, que faz tratamento hormonal há cinco anos pelo SUS.

Em São Paulo, o programa Transcidadania, promovido desde 2015 pela Prefeitura, oferece apoio para travestis e transexuais em situação de risco. A ajuda financeira, que equivale a dois salários mínimos, é combinada com aulas que variam de educação para adultos a direitos humanos, e tenta afastar essas mulheres da prostituição.

As mudanças estão acontecendo e a socióloga Berenice Bento se mostra otimista com a perspectiva: “Estamos avançando, o número de pesquisas nas universidades está aumentando. Infelizmente, o número de pessoas trans fazendo pesquisas ainda é pouco porque não existem muitos trans na universidade”.

Para a assessora Renata Bastos, uma mulher trans de 33 anos, é importante que as transexuais tenham voz até mesmo para servir de exemplo. “Com certeza tem alguma criança que deve achar que é transexual e a prostituição é o único caminho. Por isso, é importante eu falar que sou trans, para as pessoas verem que existe outra direção.”

Ainda assim, a militância cobra (e com razão) mais esforço: “A maioria das leis que estão sendo aprovadas é para os gays, e nós não somos gays, somos mulheres. Nada é específico para nós. A Lei Maria da Penha não é aplicada a nós, pois, para a sociedade, somos homens. E é isso que nós estamos lutando para não ser, esse monstro, esse extraterrestre”, comenta Mel.

Para Richard Miskolci, professor cis da Ufscar e coordenador do Quereres – Núcleo de Pesquisas em Diferenças, Gêneros e Sexualidade, o avanço da questão é o debate. Até mesmo para, quem sabe, mudar os pilares que sustentam a nossa sociedade. “Falar sobre gênero – especialmente nas escolas – é uma forma de falar sobre igualdade e reconhecimento.”

Por fim, Ledah resume por que é importante jogar luz nesse assunto. “A gente vive com medo. Minha mãe diz que, quando eu saio de casa, ela tem receio de que eu não volte.” Será que, mesmo depois de ler tudo isso, você ainda acha que a doença está em Ledah e não em quem causa nela esse medo? Tire um tempo para pensar, vai buscar um café, reflita. E, cá entre nós? Aceita que dói menos.

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