Nossa repórter passou um dia com uma dominatrix profissional para aprender a sentar o couro em quem pedir.
por / Marie Declercq / fotos / Les Chux / edição de arte / Estúdio Febre
UMA MULHER E UM HOMEM, na casa dos 20 e poucos anos, aguardavam ajoelhados e seminus. Ela usava um corset e um sutiã preto envolvendo os fartos seios cobertos por seu cabelo longo. Ele estava apenas de cueca preta. As faces de ambos estavam cobertas com máscaras de couro que só deixavam os olhos e boca expostos.
“A partir de agora vocês estão encoleirados e estarão sob o meu domínio até que eu retire essa coleira de vocês.” Quem dizia isso era uma mulher na faixa dos 40 anos de espartilho e salto alto. Enquanto falava, punha uma coleira em volta do pescoço dos jovens, que se levantaram e começaram a levar bandejas prateadas até o andar de baixo. Nelas havia chicotes, velas (muitas velas), pregadores, cordas e um punhal.
A rainha Nefertiti Ishtar – nome fetichista combinando a rainha do Antigo Egito e a deusa babilônica – me dá o sinal para acompanhá-la. Segui seus passos com dificuldade em cima de saltos enormes que desenterrei do meu armário, uma minissaia e um corset que limitava um pouco minha respiração. Começava a minha primeira aula de dominação sexual.
MEU DIA DE VÊNUS DAS PELES
Pra ser sincera, jamais me imaginei como uma dominatrix. Desde que me conheço como um ser sexual sempre fui fascinada em ser a receptora de sensações. Ver as mocinhas amarradas pelos algozes nos filmes hollywoodianos me fascinava e não conseguia entender como a Penélope Charmosa, personagem do desenho Corrida Maluca, de Hannah Barbera, não queria ser sequestrada pelo vilão Dick Vigarista. Pensei que era maluca por sentir vontade de ser amarrada e dominada por alguém até descobrir que faço parte do universo BDSM (acrônimo para Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo). Um mundo que vai muito além das páginas mamão com açúcar da trilogia 50 Tons de Cinza, onde o chicote estrala de verdade e há um leque quase interminável de fetiches que envolvem prazer, dor ou a total privação de sentidos.
No BDSM, descobri que meus desejos de ser dominada por alguém se encaixavam no termo bottom (ver o Dicionário Sadomasoquista, na página seguinte, para entender melhor). Mas acabou ficando aquela curiosidade de um dia estar no papel inverso.
Nas minhas pesquisas sorrateiras no Google e nas redes sociais especializadas em fetiches, como o Fetlife (fetlife.com), é fácil perceber que existe uma oferta abundante de mulheres oferecendo seus serviços como dominatrix e homens em busca de alguém para dominá-los. As dominadoras profissionais cobram pelos seus serviços. A maioria do mercado de prodommes (o mesmo que “dominadora profissional”) é composto por mulheres. Os clientes são majoritariamente homens que dificilmente irão pagar para receber uma “simples” sessão de sexo, como na prostituição convencional.
Vendo fotos daquelas dominadoras cercadas de homens e mulheres dispostos a realizar todas as vontades delas, pensei comigo mesma: “Por que não?”.
[1] Nossa repórter Marie Declercq aplica a técnica do Shibari no submisso José Podo; [2] A dominadora Nefertiti Ishtar pula em cima do submisso
“ELE É SEUTAPETE”
Os dois jovens que participaram da minha aula apoiaram as bandejas com os materiais em uma mesa e receberam ordens para deitar de bruços no chão.
A primeira prática era o trampling, ou seja, pisar no corpo dos submissos como se eles fossem tapetes prontos para receber os pés de uma rainha. Nefertiti me posicionou com o pé esquerdo na região do cóccix do jovem e avisou que eu poderia subir nas costas do submisso e apoiar o pé direito no meio das costas. No momento em que depositei todo meu peso, senti um leve gemido abafado pela máscara de couro e temi estar perfurando algum órgão vital. Minha professora agora pedia para eu tentar passar para o corpo da garota, deitada logo ao lado. Com muito medo de matar alguém sem querer ou cair estatelada no chão, firmei meu pé esquerdo na base das costas da garota e consegui me equilibrar em cima dela. Nefertiti estava segurando a minha mão e me pediu para olhar as costas do jovem que acabara de pisar, com uma marca protuberante do meu salto. “Você está muito bem”, elogiou a dominadora.
DICIONÁRIO SADOMASOQUISTA
BDSM_ Acrônimo para Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo. Trata-se de um apanhado de comportamentos sexuais que visa a troca erótica de poder.
BAUNILHA_ Termo usado para definir as pessoas que não praticam nenhum fetiche.
TOP_ Tanto faz o gênero, os tops são aqueles que estão no comando nas práticas do BDSM. O top pode ser ou não um dominador.
BOTTON_ Também tanto faz se for homem ou mulher, o bottom será aquele que definirá seus limites e se submeterá às práticas do top. Pode ser ou não um submisso.
SPANKING_ É o ato de bater com a mão ou com instrumentos no corpo de alguém para fins de excitação sexual. Pode servir também como uma forma de castigo.
INVERSÃO DE PAPÉIS_ Prática da dominação feminina que consiste em penetração anal masculina com a ajuda de um consolo. Pode ou não ser considerada uma prática de humilhação. Depende de você achar ou não que ser mulher é humilhante.
SHIBARI_ É um verbo japonês que significa literalmente “amarrar”. Conhecido também como bondage ou kinbaku, é uma técnica japonesa de amarração erótica usando cordas e nós
SÃO SEGURO E CONSENSUAL
Em busca de uma dominatrix que pudesse me ensinar o básico do básico, recebi uma indicação para conversar com Nefertiti Ishtar, veterana na cena BDSM em São Paulo que também oferece aulas a jovens mulheres que querem conhecer a arte da dominação. Prodomme há oito anos, Nefertiti é uma das profissionais do meio mais respeitadas e mais admiradas na cena brasileira.
“Foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida”, conta a dominadora. Nascida em uma cidade litorânea do Rio de Janeiro, Nefertiti chegou a ter empregos “normais” antes de vir a São Paulo para morar com o marido, que a apresentou para o universo sadomasoquista.
Foi um pulo para descobrir que era uma dominadora nata. “Sou muito mandona”, diverte-se. A sessão dura cerca de duas horas e custa em torno de R$ 400. O roteiro é definido previamente com o cliente, que pode escolher entre os níveis leve, moderado e pesado (variando a intensidade da dor). Entre as categorias possíveis há desde podolatria até feminização (uma modalidade onde ele poderá se vestir como uma mulher e aprender a se portar como uma). “Posso arriscar que 60% das pessoas que me procuram é para feminização”, conta Nefertiti.
Todas as práticas oferecidas seguem as regras do SSC (São, Seguro, Consensual), e o cliente receberá uma palavra de segurança (“vermelho”) que deverá ser usada sempre que ele não estiver aguentando a dor ou não estiver confortável.”Depois disso, o cliente entrará de joelhos no quarto. Nu, ele me oferece o tributo da sessão, recebe a coleira e assim começa”, explica.
“Prostituta sagrada” é como Sua Majestade define sua profissão, mesmo com a ausência do sexo no sentido estrito do termo. “Num contexto comum em que as pessoas definem prostituição, sei que não me encaixo. Mas não me ofende se chamarem meu trabalho assim. Se eu ofereço prazer em troca de contribuições monetárias, isso não seria prostituição?”
[3] Cerimônia do encoleiramento comandada por Nefertiti Ishtar. [4] e [5] Marie utiliza o spanking para castigar as costas de José Podo.
O CHICOTE ESTRALA
Depois da sessão de trampling, Nefertiti trouxe alguns chicotes de diferentes materiais para que eu pudesse aprender algumas técnicas do spanking. José Podo, como atendia o submisso chamado para ser minha cobaia, ficou de costas, e a professora pediu para eu imaginar um “Y” desenhado no torso dele, para delimitar onde o chicote iria atingir. “Assim evita-se machucar seriamente a pessoa, especialmente na região dos rins”, explicou.
O primeiro chicote que peguei era preto com longas tiras de camurça. Nefertiti começou a aquecer José dando leves chibatadas nas suas costas. Gradativamente, a intensidade começou a aumentar, até que um estalo altíssimo encheu a sala. José gemeu de dor, mas nem teve tempo de respirar, porque o pulso da dominadora começou a fazer movimentos mais firmes e rápidos.
“Sua vez”, avisou ela. Comecei leve, usando os braços para chicotear. “Use sempre o seu pulso, senão você se cansa mais rápido.” Tomei coragem e chapei as tiras nas costas de José. Levei um susto com o barulho e todos da sala caíram na gargalhada. Nunca tinha batido em alguém com tanta força, tirando a vez que dei uma porrada na cara de um imbecil que tentou me apalpar na balada. Minha professora não desistiu de mim e me instruiu a bater mais.
Comecei a aumentar a intensidade, até que as costas do “sub” estavam cobertas de vergões. Peguei um chicote de couro trançado. Dessa vez precisava tomar mais cuidado. “Pode bater, não tenha medo.” José estremecia e gemia de dor. “Não é que ela leva jeito?”, Nefertiti riu. Eu estava suando mais do que esperava dentro daquele corset de couro emprestado da minha professora. A prática terminou em alguns minutos com José de joelhos e em completo silêncio. Perguntei a ele se eu havia exagerado na hora de bater. Os olhos de José me observaram de dentro da máscara de couro: “Eu estou ótimo, não se preocupe”.
REALIZAR SEU FETICHE É BOM PARA VOCÊ
“Uma dominadora, acima de qualquer coisa, precisa aprender a dominar a si mesma”, me explica Nefertiti. “Tem de saber controlar suas emoções para isso não interferir na sessão e manter a maestria do que está fazendo.” Por considerar seu trabalho uma espécie de educação sexual, ela conta inúmeros casos de dominadoras que treinou e submissos que passaram por seus cuidados e que mudaram suas vidas ao realizarem seus fetiches. “Tenho que tirar um monte de preconceito das pessoas quando elas chegam aqui. A grande maioria dos brasileiros não foi educada para aceitar seus fetiches. Não foi educada para ter prazer”, conta.
Embora a ideia de se submeter completamente a alguém possa não parecer uma fórmula comum de encontrar autoconfiança, os próprios submissos e até eu mesma comprovamos que realizar esse tipo de fantasia funciona.José Podo tem 25 anos se declara muito feliz na posição de “receptor da dor”. Tímido, buscou os serviços de outra dominadora há cinco anos para praticar a podolatria. Em pouco tempo sua vida foi mudando para melhor. “Me senti mais confiante e cresci na vida profissional, e agora frequento as festas do meio”, conta.
Koré Ishtar, a mulher submissa da sessão, tem 24 anos e também diz que poder se entregar como serva à Nefertiti melhorou sua vida baunilha (baunilhas são aqueles que não praticam nenhum fetiche). “Você traz uma energia muito boa da sessão ao seu dia a dia”, diz. Koré foi encoleirada (ou tornou-se submissa a Ishtar) há poucos meses, em uma decisão consciente de se entregar à dominadora. Ela também tem um relacionamento aberto com um cara, que não sabe da sua vida dupla.
Suas alunas também se transformam: aprendem a amar os seus corpos e a se sentirem, acima de tudo, deusas. “O BDSM não tem estereótipos. Não precisa ser magrinha, malhada ou ter um pinto gigante. Todo corpo é prazeroso, não existe uma forma predefinida. Tudo se encaixa”, explica ela. A maioria dos clientes é casada, entre 25 e 65 anos de idade. “Uns são bem iniciantes e me procuram para realizar seus fetiches ou aprenderem como se portar perante uma dominadora. Outros já sabem o que querem e vêm com tudo em mente”, conta.
Perguntei se eles saem diferentes depois da sessão e Nefertiti foi direta: “Todos saem com um imenso sorriso no rosto”. Para a dominatrix, certos empresários, políticos e homens de família precisam “deixar o controle da vida” na mão de outra pessoa para conseguir se impor na vida cotidiana.
AMARRAÇÃO DO AMOR
Depois de testar os chicotes, comecei a me sentir mais confiante. Nefertiti ordenou José a acender as várias velas pretas em uma superfície de mármore e chamou Koré para a próxima lição. Koré estava agora sem sutiã e seus seios pendiam livremente em cima do corset que lhe afinava a cintura. Era a hora de amarrá-la com uma das cordas de fibras sintéticas separadas pela dominadora.
Nefertiti começou a mostrar como amarrar os seios de Koré e me pediu para repetir seus movimentos na submissa. Vendo Nefertiti lidar com as cordas com tanta destreza, tive a impressão de que aquilo seria algo fácil de fazer. Estava errada. Já tinha sido amarrada algumas vezes pelo meu namorado antes e percebi como sou sortuda de ter alguém que goste de fazer isso em mim.
Com ambos amarradinhos, Nefertiti me deu alguns pregadores e pediu para que eu os prendesse nos mamilos de José, que gemeu de dor até distribuirmos cinco pregadores em cada lado do peito.
“Agora você precisa tirar, não é mesmo?” Antes que eu respondesse, Nefertiti me alcançou um pequeno chicote com tiras de correntes e pediu para que eu batesse nos mamilos dele até que os pregadores se desprendessem do corpo.
José sofria baixinho, com uma dominadora em cada lado tentando retirar os pregadores na base da porrada. Lembre-se de que ele estava amarrado e já tinha recebido minhas outras chicoteadas nas costas alguns minutos atrás.
“Vermelho!”, pediu. Era a palavra de segurança, o que significa que era hora de parar. Retiramos os pregadores com as mãos. José deitou no chão e Nefertiti pediu para desamarrá-lo para irmos para a última prática.
“O que você faz agora para levantar ele do chão?”, perguntou a professora. “Hum, eu ajudo ele a se levantar?”, respondi. “Você vai ajudar ele a se levantar? Não! Você ordena que ele se vire de costas para você conseguir soltar a corda”, arremata a dominatrix.
Me abaixei e pedi timidamente para que ele se virasse. “Não, não é assim que você tem que se impor. Você manda aqui”, me aconselhou Nefertiti. “Vira de costas agora. Vira de costas!”, levantei a voz. José pediu desculpas e se virou da melhor maneira que as cordas o permitiam e comecei a desamarrá-lo. “Obrigada”, sussurrei sem graça. Talvez essa coisa de dominar e dar ordens não seja muito para mim.
VELAS DERRETIDAS E CORPOS SUADOS
Voltamos ao segundo andar na última etapa da aula. O quarto reservado estava fervendo, cheio de velas acesas. Era a ambientação do waxplay, que significa basicamente pingar parafina quente no corpo de alguém (Nefertiti avisa que é sempre bom manter uma toalha úmida por perto, para evitar algum acidente). De quatro e com as mãos algemadas, Koré e José esperavam obedientemente a última etapa da minha dominação.
Comecei com uma vela em cada mão e fui pingando a cera quente nas costas deles. Nefertiti parecia se divertir com sua submissa, levando a parafina até a bunda rosada e arredondada de Koré, que se contorcia de dor.
O segredo do waxplay está em testar a vela para ver se não irá causar queimaduras graves e também tomar cuidado com a distância que você irá pingá-la no corpo da pessoa. Quanto mais perto, mais intensa será a dor. Por isso, só me senti segura em aproximar a vela das costas de José quando uma crosta se formou.
[6] e [7] o waxplay era a última etapa da aula de dominação
HORA DE VIRAR ABÓBORA
Terminada a aula, era hora de “desmontar” meu look de dominadora e voltar para a vida real. Tirando o corset (e respirando, ufa) e o salto alto que estava destruindo meus pés, me senti uma espécie de “Cinderela do fetiche” voltando à forma de abóbora. Nefertiti acariciou os rostos já descobertos dos seus submissos e os mandou limpar a sala.
Durante toda a sessão fiquei tentando sacar as sensações que estavam passando pela minha mente e corpo. O prazer estava lá, claro. Mas não era especificamente em estar dominando os dois jovens e, sim, em saber que de alguma forma eu estava dando tesão àqueles corpos. O mais importante foi que, ao ver como é o outro lado do jogo, me senti segura para ser uma bottom mais ousada. De volta ao outro lado do chicote, só posso agradecer aos ensinamentos da rainha.